Em Defesa da Vida

Eu me lembro, faz muitos anos. Estava começando a minha clínica e atendia em modesta sala de um prédio antigo, situado na rua Barão de Mesquita, esquina de Araripe Júnior, no Andaraí.

Esse consultório estava localizado no primeiro andar do prédio, e o acesso a este se fazia através de larga e longa escada que levava a um corredor espaçoso onde havia algumas cadeiras. Era ali que, sentados, os doentes aguardavam a vez de ser atendidos. Acontecia freqüentemente que me procuravam pessoas de condição social muito modesta e naquele dia, tendo já subido a escada, quando me dirigia à porta que dava entrada ao consultório, deparei com uma mulher moça, em cujo semblante fechado e sombrio entrevi um caso de grande sofrimento. Não me enganei, pois quando chegou a vez de seu atendimento, pude constatar a grande tempestade que se desencadeara em sua mente. À minha habitual pergunta: "Qual o motivo de tua consulta? O que sentes?" - ela respondeu, quase agressivamente:

- Vim aqui apenas para saber se estou grávida, porque se estiver, eu o mato - o autor desta minha desgraça -, em seguida me atiro debaixo de um bonde e acabo assim com a minha desgraçada vida, evitando também que por mim venha ao mundo outro infeliz.

Diante desta inesperada reação da minha cliente, aproximei-me mais da moça e, abrandando o quanto pude a minha voz, disse-lhe, como médico:

- Para responder, minha filha, à tua pergunta, afirmativa ou negativamente, precisaria proceder a certos exames para os quais o meu consultório de simples clínico geral não está preparado e, além disso, de certos testes realizados na urina, próprios para evidenciar a gravidez.

Ia dizer-lhe que deveria procurar um ginecologista ou ir a um ambulatório da especialidade em algum hospital, quando, lembrando-me da minha condição de espírita, que já era, além de médico, irresistivelmente fui levado a dizer-lhe:

-Mas acalma-te; dize-me o que se passa contigo, o que te aconteceu que te está induzindo a praticar atos de tanta gravidade? Conta-me a verdade; quero ajudar-te.

Ouvi, então, daquela desventurada criatura a história de um mau passo a que fora levada pelo filho de sua patroa, em cuja casa era empregada doméstica. Enleada pelo rapaz, que não nutria por ela qualquer sentimento mais nobre, sendo movido apenas por apetites sensuais, quando surpreendida pela ausência de menstruação no dia certo e nos seguintes, caiu em si do ato praticado de humana fraqueza e começou a preocupar-se. Quis enfrentar a realidade com calma e confiança. Ao manifestar, porém, seus receios ao autor daquela situação, este se mostrou insensível, totalmente desinteressado, dizendo-lhe também que nada tinha a ver com aquilo. Ela que se arranjasse.

Foi quando, então, sabedor desses antecedentes e tendo-me inteirado, após superficial exame, de alguns sintomas significativos que a moça já apresentava, como que movido por uma força superior à minha própria vontade, lhe disse, com um tratamento em que pus o máximo que pude de afetividade:

- Escuta, filha, afirmar não te posso, mas é muito provável que estejas mesmo grávida. Mas, mesmo que o estejas, não vais fazer nada disso que planejaste e acabas de me revelar. E isso porque desde este momento tu vais meditar profundamente sobre as conseqüências de atos que atentariam contra a vida de três criaturas de Deus: esse moço que acusas, tu mesma e um ser em formação, indefeso, mas que já é um ser com pleno direito à vida, dentro das Leis da Natureza, que são Leis de Deus.

E falei-lhe, então, sobre tudo aquilo que pode um espírita dizer a respeito das conseqüências espirituais do homicídio e do suicídio, bem como da desatenção à vida de um indefeso ser em gestação. Por fim, disse-lhe:

- Sabedora agora de tudo isto, o que vais, pois, fazer, isso sim, é levar a termo o fruto desta concepção; ele se tornará um menino e tu o receberás como filho de teu coração; a ele te dedicarás, cercá-lo-ás com teus cuidados e o teu carinho maternal; ele se desenvolverá ao calor do teu amor materno e crescerá. Tu lhe ensinarás a andar - que alegria quando o vires dar seus primeiros passinhos! -, e também lhe ensinarás a falar - ele pronunciará a doce palavra mamãe, e tu sorrirás. Educá-lo-ás em casa, primeiro, mas ele se tornará um menino mais crescidinho e o levarás à escola, onde adquirirá novos conhecimentos. Ele se alegrará com tudo isso e te retribuirá com o seu amor filial. Sob tais influxos, da mãe e dos educadores, ao lado de conhecimentos, desenvolverá virtudes. Crescerá mais, tornar-se-á um rapaz, um moço e, enfim, um homem de bem, digno, honesto, capacitado para o trabalho. Será teu arrimo e a alegria de tua vida.

Aquela mulher ouviu, somente. Nada mais disse. Ao despedir-se, porém, o seu semblante era, surpreendentemente, outro; havia nela uma aura de paz e em seus olhos pequeninos luziam duas lágrimas. Saiu e não a vi mais senão quando, alguns meses depois, voltava trazendo nos braços um pequenino ser que agora era - ó Deus de Bondade! - o seu amado filhinho. Contou-me que fizera tudo como lhe havia predito e agora estava feliz com o seu pequenino tesouro. Acompanhei o crescimento e o desenvolvimento dessa criança, tratei todas as enfermidades da sua infância e da sua adolescência. Muitas vezes a visitei, quando febril, na modestíssima casa onde sua mãe morava, nos fundos de uma vila, na rua Gastão Penalva, no Andaraí, mantida por ela através de trabalho honrado e digno. Era, então, o menino Demócrito, nome que lhe dera sua mãe. Esta consagrou-se inteiramente ao filho e conseguiu fazer dele um homem de bem, o qual amparou a sua genitora, suavizando os dias de sua existência. E isto até quando foi ela colher, na Espiritualidade, a compensação que Deus reserva a todos que escutam a sua voz, através da do anjo guardião ou da própria consciência, às vezes, entretanto, despertada por um simples e imperfeito instrumento humano de sua Divina Bondade.

Thiago, Lauro S.. Reformador Abril de 1994.