Agostinho de Hypona discorre, no Item 9 do Capítulo XIV de O Evangelho segundo o Espiritismo, sobre um tema ao qual Kardec intitulou de “A Ingratidão dos Filhos e os Laços de Família”. Naquele trecho, um dos muitos classificados pelo Codificador como “Instruções dos Espíritos”, Agostinho inicia afirmando ser a ingratidão um dos frutos diretos do egoísmo. De fato, quem não é grato por um favor que recebe é porque se julga merecedor de tal favor, entendendo que aquele que o prestou nada mais fez que sua obrigação. Ora, o que é alguém que se julga merecedor do favor de todos sem a ninguém achar necessário agradecer, senão alguém totalmente centrado em si mesmo, isto é, um egoísta?
A seguir, Agostinho apresenta as três situações básicas em que a sociedade humana entende estar ocorrendo a ingratidão de filhos para com seus pais, a saber:
- quando os espíritos guardam ódio entre si por força de ocorrências passadas e a sua aproximação, encarnando como membros de uma mesma família, não logra atenuar suficientemente tais ódios;
- quando os pais, por motivos vários, são tolerantes em demasia para com os vícios de seus filhos, faltando ao seu dever de transmitir a eles valores morais e lhes permitindo que façam tudo o que desejam fazer, colhendo, quando idosos, os frutos que eles mesmos plantaram;
- quando uma família constituída de espíritos afins e harmonizados recebe em seu meio um espírito em desequilíbrio e, mesmo tudo fazendo para integrá-lo ao ambiente de paz e harmonia do restante do núcleo familiar, não conseguem desviá-lo totalmente do vício.
Explicando-nos os motivos para cada situação e nos orientando sobre como proceder em cada caso, o ex-bispo de Hipona, uns dos grandes pensadores cristãos e grande colaborador da Codificação, encerra sua mensagem.
Gostaríamos, neste ponto, de fazer uma reflexão junto com o amável leitor. Sabemos que os preceitos morais de Jesus nos foram explicados pelos espíritos que colaboraram na Codificação, sobre a liderança de nosso amado Mestre, com a finalidade de nos consolar quanto às angústias que atormentavam nosso coração e nos esclarecer quanto às dúvidas que intrigavam nossas mentes, apontando-nos, dessa forma, um rumo seguro a tomar. Ora, como não poderia deixar de ser, os esclarecimentos voltados a consolar nossas angústias tiveram que ser direcionados àquelas que atormentavam a sociedade humana no século XIX, muitas das quais ainda o fazem neste século XXI. Tais angústias eram, como ainda são, fruto de nossa percepção das coisas e, como tal, passíveis de atenuação, à medida que tal percepção se torna mais clara e tem melhor correspondência com a realidade.
É nessa linha de raciocínio que nos propomos a refletir sobre a percepção da sociedade humana quanto ao que seja gratidão ou ingratidão de filhos.
Ingratidão é falta de gratidão. O sentimento de gratidão está associado à percepção, por aquele que é grato, de ter recebido um favor daquele a quem ele é agradecido. Ao falamos de gratidão dos filhos, portanto, é mister que saibamos qual o favor que fazemos a nossos filhos para que venhamos a esperar deles gratidão. Vejamos algumas hipóteses.
Talvez nossos filhos nos devam ser gratos porque os trouxemos à vida. No entanto, trazer filhos à vida, todos os animais trazem. O prazer que todos os animais e o ser humano sentem no ato de acasalamento existe como estímulo à reprodução, com finalidade, segundo a ciência, da perpetuação da espécie. Trazer filhos à vida é, portanto, uma simples lei da natureza. Talvez nos devam ser gratos porque os agasalhamos, abrigamos e educamos. Mas, agasalhar, abrigar e educar filhos, os animais superiores também fazem com os seus. Mais uma vez, o ser humano nada faz de especial.
Que fazemos por nossos filhos, então, que mereça a sua gratidão? Antecedendo um pouco essa questão, perguntemos a nós mesmos o que fazem os outros por nós que nos faça sentir agradecidos. Quando um pintor faz um serviço perfeito em nossa casa, sem uma falha, somos gratos a ele por isso? Quando deitamos na cama, tranqüilos, à noite, sabendo que há um vigia noturno na portaria cuidando para que estranhos não entrem em nosso prédio e abrindo a porta para os moradores que chegam tarde, somos gratos a ele por isso? Quando saímos na rua e pisamos em uma calçada limpa, somos gratos ao lixeiro que a varreu? Ocorre que esses, poderia nos dizer o leitor amigo, são casos em que pagamos pelos serviços, logo não há porque sermos gratos por eles serem bem executados. Tudo bem, vejamos, então, casos onde não ocorre pagamento.
Quando vamos ao Centro Espírita e somos beneficiados pela espiritualidade e pelos trabalhadores anônimos que ali trabalham, somos gratos a eles pelas bênçãos recebidas? Ao longo do dia, sempre que nos sentimos bem e inspirados em nossos pensamentos ou ações ou quando nos sentimos confortados em nossas crises emocionais, lembramos de agradecer a nossos guias espirituais, pela paciência com que eles, há séculos ou milênios, nos guiam e orientam, sempre acreditando em nós, mesmo quando nós mesmos não o fazemos mais? Quando contemplamos a natureza e vemos a beleza de suas formas e a sabedoria expressa em cada um de seus seres, somos gratos a Jesus por nos ter oferecido como lar um jóia tão preciosa? Quando acordamos pela manhã, somos gratos a Deus, pelas suas soberanas, sábias e amorosas leis que nos oferecem mais uma oportunidade de corrigir nossos erros, vencer provas e progredir sem cessar até a perfeição?
Se nunca somos gratos pelos benefícios que recebemos diariamente de Deus, de Jesus, de nossos guias espirituais e dos homens, por que razão haveríamos de esperar a gratidão dos filhos pelo simples fato de termos cumprido nosso dever para com eles?
Desconcertados por não encontrarmos nenhum motivo para que nossos filhos nos sejam gratos, lembramos, finalmente, do amor. Sim, nosso filho nos deve ser grato porque o amamos, dizemos, aliviados por termos encontrado um motivo. Mas, como foi que o amamos? Era nosso amor um amor “eros”, o amor egoísta, todo o tempo levando nosso filho a fazer coisas que fizessem bem ao nosso ego e não ao seu progresso espiritual? Era “filis” o nosso amor, um amor possessivo, sufocando nosso filho na infância e adolescência com nossa permanente presença, nada deixando que ele decidisse por si só e, quando adulto, cobrando dele constantes visitas e telefonemas como se a única razão de seu viver fosse estar sempre junto de nós? Ou nosso amor era “ágape”, o amor altruísta e desprendido, tudo fazendo para ajudá-lo em sua caminhada, incentivando-o, orientando-o com paciência e dedicação no caminho do bem, mas nada esperando em troca?
Enfim, chegamos onde queríamos chegar. A única coisa que podemos dar a nossos filhos que, em tese, mereceria gratidão, é justo aquela que nada espera em troca, o amor incondicional. Amemos nossos filhos com desprendimento, nada esperando deles por isso. Nossos filhos são espíritos, filhos de Deus que estão sob nossos cuidados porque nossos guias espirituais julgaram que poderíamos ajudá-los em sua evolução. Façamos o que se espera de nós dando o melhor que temos nessa missão. Nossa recompensa pelo amor que dedicarmos a eles será a satisfação de vê-los trilhando o caminho do bem, sinalizando para nós que nossa missão para com eles terá sido cumprida. Quem ama de verdade já está recompensado e não espera gratidão da pessoa amada.
Renato Costa. O Clarim, edição de setembro de 2006. Matão, O Clarim..